Por Luiz Carlos da Rocha
Os consumidores dos planos de saúde no Brasil são desorganizados. Vivem à mercê das decisões da Agência Nacional de Saúde Suplementar, dos Procons, do Ministério Público da saúde e do consumidor, e das decisões do Judiciário que, via de regra, não distinguem o interesse individual de um consumidor do interesse coletivo dos consumidores.
Os trabalhadores médicos e não médicos que atuam nos planos de saúde têm suas justas reivindicações remuneratórias, os hospitais, clínicas, laboratórios, fornecedores, buscam sempre melhores preços pelos seus produtos e serviços, todos sempre representados por associações ou sindicatos.
As operadoras, que também tem sua associação e sindicatos, estão sempre na busca de crescer para melhorar seus ganhos na operação e na busca de um bom negócio de compra ou venda de carteiras, dado o brutal processo de concentração em curso no segmento.
Até o SUS busca o ressarcimento quando atende na sua rede de assistência o cidadão que possui plano de saúde.
O resultado do olhar individual sobre o consumidor é que há pouco discernimento sobre a necessidade de cuidar do seu interesse coletivo e o caso da Prevent Sênior se apresenta como só mais um flagrante dessa incompreensão.
É uma oportunidade para um esforço no sentido de ajustar a compreensão sobre um setor da economia que hoje reúne cerca de 70 milhões de consumidores, segundo a Abramge[1].
A associação mantém em seu sítio na Internet um “Custômetro” dos Planos de Saúde que, no dia 27.09.2021, às 10:50 horas, mostrava o setor atingindo um valor histórico acumulado de R$ 125.495.722.766,07, em gastos históricos com despesas na assistência à saúde dos consumidores, tais como serviços de consulta, exames, terapias, internações e outros atendimentos ambulatoriais, que envolvem desde a assistência primária até a alta complexidade.
Tivesse o constituinte optado por um sistema inteiramente público, com vedação ao privado, o SUS estaria arcando com toda essa demanda e seu custo astronômico. Trata-se, portanto, de uma atividade através da qual seus consumidores acabam desonerando o SUS, exatamente porque deixam de recorrer a ele nas coberturas que contratam com os seus planos de saúde.
O SUS, o plano de saúde público mantido pelo Estado, universal e gratuito, é uma conquista virtuosa da sociedade brasileira e a pandemia está lembrando que ela não pode se descurar de fazê-lo sempre mais forte, inclusive para tornar o cidadão menos dependente dos planos de saúde.
A saúde suplementar foi concebida para aquele cidadão que tem o conforto de não recorrer ao SUS e o debate sobre a atividade privada na saúde está superado pela vigência do artigo 199, da Constituição Federal: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
O primeiro passo para uma boa mirada sobre o sistema complementar é compreender que os recursos acumulados pelos planos de saúde não pertencem às empresas ou a seus sócios.
A natureza e o conceito da operação estão impressos nos termos empregados pelo próprio legislador: “operadora” e “saúde suplementar”.
A “operadora” administra os recursos acumulados a partir das contraprestações mensais do associado ao plano de saúde, pessoa que optou por prover sua assistência à saúde fora do plano público e sem renunciar o direito a este: tem o direito, mas resolveu não usar ou só usar em situações extremas, daí a natureza suplementar.
O Plano de Saúde é, portanto, uma operação coletiva de poupança na qual os consumidores se associam por meio de contrato um privado, que tem como objetivo a formação de um fundo comum, tal como expressamente disposto no inciso I, do art. 1º, da Lei 9.656/98[2], administrado pela “operadora”.
O interesse público que caracteriza o setor levou o legislador a instituir a regulação por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), como uma longa mão do Estado a zelar pelo uso de parâmetros de excelência na gestão dos recursos geridos pelas operadoras, que pertencem a cerca de 70 milhões de consumidores.
É importante compreender que as empresas só podem operar com a chancela da ANS, através da obtenção do registro respectivo (art. 19, § 7, da Lei 9.656/98), a partir do qual são fiscalizadas amplamente em todas as suas ações (art. 20).
A fiscalização da gestão dessa imensa poupança popular pela ANS deve ser rigorosa e, para que seja efetiva, o artigo 22, da citada Lei, obriga as empresas a submeter suas contas a auditores independentes, registrados no respectivo Conselho Regional de Contabilidade e na Comissão de Valores Mobiliários, publicando, anualmente, o parecer respectivo, juntamente com as demonstrações financeiras determinadas pela Lei 6.404/1976, para que quem quiser possa consultar.
A mirada individualista de uma operação de natureza coletiva é que tem levado, aqui e ali, à falsa ideia de que a Prevent Sênior é uma operação pertencente a um grupo de empresários, que enchem as burras com ela.
Esse preconceito ignora que ali há um interesse coletivo relevante a ser protegido.
Esse interesse coletivo impõe que, diante da existência de anormalidades administrativas, que coloquem em risco a continuidade ou a qualidade do atendimento à saúde, a ANS institua a intervenção com o regime de direção técnica, afastando o infrator, funcionários, diretores, administradores, gerentes e membros do conselho fiscal (art. 24), aplicando as sanções que entender cabíveis, obedecido o contraditório e a ampla defesa (arts. 25, 29, 29A).
Postas as coisas assim, nesse universo de providências, deve a ANS pronta ação para aferir se é o caso e fazer cessar toda e qualquer irregularidade em curso, que esteja cause danos à saúde dos associados ao plano de saúde.
A Prevent Sênior parece ter feito o impensável. Enquanto os planos de saúde brigam diariamente no Judiciário para não pagar tratamentos não autorizados pela ANVISA, experimentais, sem comprovação científica, não previstos no rol de procedimentos da ANS, sem tenham cobertura contratual, a Prevent Sênior fez exatamente o contrário com o tal tratamento precoce, o que é expressamente vedado pelo art. 10, I, IX, da Lei 9.656/98.
Nesse contexto, além da ANS, a ANVISA, o Ministério Público do Estado de São Paulo, o PROCON e o Conselho do Medicina precisam agir para proteger o interesse coletivo dos consumidores associados à Prevent Sênior dos riscos a que involuntariamente estão submetidos, que não se confundem com os interesses dos consumidores que foram diretamente atingidos no episódio.
Isto porque, o espírito emprestado pelo legislador na construção do aparato normativo que regula a atividade é o da máxima preservação da empresa, da integridade da carteira e das contingências financeiras constituídas para atende-la, no interesse coletivo do consumidor.
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Luiz Carlos da Rocha, advogado, Mestre em Direito, sócio fundador da França da Rocha & Advogados Associados, autor de “O direito à saúde e o sistema suplementar” (Contracorrente, 2018).
[1] Associação Brasileira de Planos de Saúde
[2]ROCHA, Luiz Carlos. O direito à saúde e o sistema suplementar, Contracorrente: 2018; LIMA, José Reinaldo. Saúde e responsabilidade, Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, RT: 1999, p. 30; SILVA, José Luiz Toro. Manual de Direito da Saúde Suplementar, Mapontes: 2005, p. 62.